Ter me tornado artista é uma prova da fé de uma criança que nunca deixou de acreditar na presença de Deus ao seu lado. A esperança é o rascunho da certeza e da realização, mesmo quando elas por vezes e por algum tempo não se revelam aos nossos olhos.
O O I T A V O A N Ã O
Minha infância foi rica, permeada de fantasia. Minha avó, exímia contadora de histórias de trancoso, todas as noites nos reunia em torno da mesa grande da sua casa ou no banco do jardim, levando-nos a um universo repleto de surpresas advindas de representações às vezes engraçadas ou tristes, outras complexas, outras mais simples, ouvidas todos os dias, numa repetição renovada e aguardada, sempre nos pegando de... Surpresa.
Ríamos das mesmas peças pregadas pelas mesmas personagens; assustávamo-nos com os mesmos perigos enfrentados pelos heróis e donzelas; subíamos e descíamos escadas, torres e masmorras de castelos assombrados e ouvíamos bichos falando, tornando-se inimigos ou compadres, salvando ou ludibriando uns aos outros, em noites fartas, férteis, repetidas e inesquecíveis.
Como conseqüência dessas noites eu acreditava possíveis e verdadeiras aquelas situações, como, por exemplo, o casamento da dona baratinha com o ratinho glutão; o rato roendo as cordas salvando o leão; os porquinhos e chapeuzinho vermelho fugindo do lobo mau...
Índias tapuias, curupiras e sacis eram tão vivos e presentes como colegas da classe. Eu era de fato amigo dos sete anões e sentia-me como um deles trabalhando nas minas, lustrando pedras, cantando, carregando lanternas, temendo e detestando a bruxa da maçã.
Acreditar, adentrar e viver esse universo levou-me a viver uma história real.
Como toda criança eu tinha problemas para resolver: dor de ouvido, cadeira de dentista, dor de dentes e arrancá-los com cordão, chumaço de algodão, boticão e outros ãos. Não sei o pior, eles ou a terrível tabuada. Nota vermelha no boletim, ser flagrado numa travessura ou numa mentira era o fim. Um dia um prego entrou no meu pé. Escondi o ferimento até quando inflamou e não pude mais disfarçá-lo. A bronca veio com tudo e dobrada.
Como toda criança eu tinha problemas para resolver: dor de ouvido, cadeira de dentista, dor de dentes e arrancá-los com cordão, chumaço de algodão, boticão e outros ãos. Não sei o pior, eles ou a terrível tabuada. Nota vermelha no boletim, ser flagrado numa travessura ou numa mentira era o fim. Um dia um prego entrou no meu pé. Escondi o ferimento até quando inflamou e não pude mais disfarçá-lo. A bronca veio com tudo e dobrada.
Então decidi. Todas as noites quando ia dormir, acomodava ao meu lado o meu anjo da guarda, pedindo a ele e a Deus um tapete voador, uma lâmpada mágica ou uma varinha de condão daquelas usadas por fadas, magos e gênios para realizar desejos. Eu acreditava nisso. Com eles, todos os meus problemas estariam resolvidos: um toque da varinha e o dente estaria curado, o ouvido sarado, a nota vermelha azularia e danem-se tabuadas, pregos enferrujados, dentistas e boletins. Adeus broncas e castigos. Sumam também as palmadas. Com um toque na cabeça tornar-me-ia invisível e meu pai não mais me cobraria, ferozmente, o três vezes cinco e o nove menos três por mim nunca lembrados.
Pensando assim eu ‘abraçava’ o anjo e adormecia.
No outro dia acordava e, lentamente, levantava o travesseiro para ver se estavam lá. Não estavam. Mas amanhã certamente chegarão, pensava confiante.
Depois de muitos amanhãs, nem varinhas, nem tapetes, lâmpadas, nada. Fui crescendo e esqueci o meu pedido. Aqui e ali umas broncas, uns castigos, dor de dentes, de ouvidos, timidez e teoremas, matemáticas e problemas, notas vermelhas a quilo. Dando topadas e sorrisos logo cedo abracei a causa da arte. Tornei-me pintor, desenhista, arriscando-me às vezes a escrever alguma coisa.
Aos vinte e cinco anos casei e dessa união brotou uma menina chamada Savana, hoje com vinte e um anos (agora, 2011, com vinte e cinco). Todas as noites depois de acomodá-la para dormir, entregava-me aos trabalhos nas telas e papéis até o dia amanhecer. Vi muitas noites passando e muitos dias nascendo, colorindo madrugadas, até ver, numa delas, um milagre acontecer.
No brilho da luminária refletido num pingo de tinta, na ponta do pincel, tomei consciência de Deus me fazendo entender que há muito atendera ao meu pedido. Tornou-me artista e me deu pincéis e lápis de cor. Centenas deles! Varinhas de condão com as quais eu coloria e resolvia os meus “problemas”, assim como o de muitas outras pessoas, uma vez que a arte tem a faculdade de realizar fantasias, decifrar signos, apontar caminhos, criar e captar escuros, traduzindo-os e transformando-os em luz.
Com os olhos marejados não sei por quanto tempo, fiquei parado, perplexo, envolvido por uma energia vinda não sei de onde. Talvez de um fino chuvisco caído repentinamente, refrescando aquela madrugada quente, tendo o pincel repousando nas mãos, rolando-o entre os dedos como quem, agradecido e incrédulo, acabou de receber e tomar consciência de um precioso presente.
Não era à toa eu me sentir o oitavo anão. Eu os ajudava nas minas. Com eles cantava, carregava lanternas, colhia e lustrava pedras preciosas, acreditando em sonhar.