23 de fevereiro de 2011


Ter me tornado artista é uma prova da  fé de uma criança que nunca deixou de acreditar na presença de  Deus ao seu lado. A esperança é o rascunho da certeza e da realização, mesmo quando elas por vezes e por algum tempo não se revelam aos nossos olhos.


O  O I T A V O   A N Ã O

Minha infância foi rica, permeada de fantasia. Minha avó, exímia contadora de histórias de trancoso, todas as noites nos reunia em torno da mesa grande da sua casa ou no banco do jardim, levando-nos a um universo repleto de surpresas advindas de representações às vezes engraçadas ou tristes, outras complexas, outras mais simples, ouvidas todos os dias, numa repetição renovada e aguardada, sempre nos pegando de... Surpresa.
Ríamos das mesmas peças pregadas pelas mesmas personagens; assustávamo-nos com os mesmos perigos enfrentados pelos heróis e donzelas; subíamos e descíamos escadas, torres e masmorras de castelos assombrados e ouvíamos bichos falando, tornando-se inimigos ou compadres, salvando ou ludibriando uns aos outros, em noites fartas, férteis, repetidas e inesquecíveis.
Como conseqüência dessas noites eu acreditava possíveis e verdadeiras aquelas situações, como, por exemplo, o casamento da dona baratinha com o ratinho glutão; o rato roendo as cordas salvando o leão; os porquinhos e chapeuzinho vermelho fugindo do lobo mau...
 Índias tapuias, curupiras e sacis eram tão vivos e presentes como colegas da classe. Eu era de fato amigo dos sete anões e sentia-me como um deles trabalhando nas minas, lustrando pedras, cantando, carregando lanternas, temendo e detestando a bruxa da maçã.
Acreditar, adentrar e viver esse universo levou-me a viver uma história real.
Como toda criança eu tinha problemas para resolver: dor de ouvido, cadeira de dentista, dor de dentes e arrancá-los com cordão, chumaço de algodão, boticão e outros ãos.  Não sei o pior, eles ou a terrível tabuada. Nota vermelha no boletim, ser flagrado numa travessura ou numa mentira era o fim. Um dia um prego entrou no meu pé. Escondi o ferimento até quando inflamou e não pude mais disfarçá-lo. A bronca veio com tudo e dobrada.
Então decidi. Todas as noites quando ia dormir, acomodava ao meu lado o meu anjo da guarda, pedindo a ele e a Deus um tapete voador, uma lâmpada mágica ou uma varinha de condão daquelas usadas por fadas, magos e gênios para realizar desejos. Eu acreditava nisso. Com eles, todos os meus problemas estariam resolvidos: um toque da varinha e o dente estaria curado, o ouvido sarado, a nota vermelha azularia e danem-se tabuadas, pregos enferrujados, dentistas e boletins. Adeus broncas e castigos. Sumam também as palmadas. Com um toque na cabeça tornar-me-ia invisível e meu pai não mais me cobraria, ferozmente, o três vezes cinco e o nove menos três por mim nunca lembrados.
Pensando  assim eu ‘abraçava’ o anjo e adormecia.
No outro dia acordava e, lentamente, levantava o travesseiro para ver se estavam lá. Não estavam. Mas amanhã certamente chegarão, pensava confiante.
Depois de muitos amanhãs, nem varinhas, nem tapetes, lâmpadas, nada. Fui crescendo e esqueci o meu pedido. Aqui e ali umas broncas, uns castigos, dor de dentes, de ouvidos, timidez e teoremas, matemáticas e problemas, notas vermelhas a quilo. Dando topadas e sorrisos logo cedo abracei a causa da arte. Tornei-me pintor, desenhista, arriscando-me às vezes a escrever alguma coisa.
Aos vinte e cinco anos casei e dessa união brotou uma menina chamada Savana, hoje com vinte e um anos (agora, 2011, com vinte e cinco). Todas as noites depois de acomodá-la para dormir, entregava-me aos trabalhos nas telas e papéis até o dia amanhecer. Vi muitas noites passando e muitos dias nascendo, colorindo madrugadas, até ver, numa delas, um milagre acontecer.
No brilho da luminária refletido num pingo de tinta, na ponta do pincel, tomei consciência de Deus me fazendo entender que há muito atendera ao meu pedido. Tornou-me artista e me deu pincéis e lápis de cor. Centenas deles! Varinhas de condão com as quais eu coloria e resolvia os meus “problemas”, assim como o de muitas outras pessoas, uma vez que  a arte tem a faculdade de realizar fantasias, decifrar signos, apontar caminhos, criar e captar escuros, traduzindo-os e transformando-os em luz.
Com os olhos marejados não sei por quanto tempo, fiquei parado, perplexo, envolvido por uma energia vinda não sei de onde. Talvez de um fino chuvisco caído repentinamente, refrescando aquela madrugada quente, tendo o pincel repousando nas mãos, rolando-o entre os dedos como quem, agradecido e incrédulo, acabou de receber e tomar consciência de um precioso presente.
Não era à toa eu me sentir o oitavo anão. Eu os ajudava nas minas. Com eles cantava,  carregava lanternas, colhia e lustrava pedras preciosas, acreditando em sonhar.



22 de fevereiro de 2011



Cara patrícia,


Realmente as coisas estão fora de lugar e da tão aclamada ‘ORDEM’


Fevereiro de 2011. Participei do SALÃO DA MARINHA, realizado no centro de convenções de Maceió. Quem promove a arte aqui em Alagoas ultimamente são as forças armadas. Ano passado tivemos a não sei quantésima edição do salão do exército e agora estamos vendo – e participando – do 26 salão da marinha...


Apesar de não afeito a esse tipo de evento, por ser realizado com tanta burocracia militar, resolvi participar, uma vez que tinha algo a dizer e não via, como não vejo a longo prazo, um horizonte mais propício e chegado para falar de assuntos abordados pela minha arte.


Temos visto por todas as partes a violência, não respingando, mas caindo de enxurrada sobre as crianças. Antes o comum eram os filhos enterrando seus velhos pais. Hoje, o comum tem sido pais enterrando seus filhos, quando não os matando. Por isso resolvi chamar a atenção para esses episódios que estamos vendo a toda hora.


        Participei com este trabalho e com dois poemas inspirados nele:







GRAMADO GRIS




Desaba o mundo em terremotos,
Furacões e tsunamis,
Bombardeios, trombas d’água,
Hecatombes e Nardonis


Mostra o mundo suas garras
Derretidas, degeladas,
Cada vez mais afiadas


Mostra cartas, suas farpas,
Diz também saber bater na cara
E jogar o jogo da insensatez,
Da cupidez, da arrogância,
Beligerância, falta de infância,
De distâncias sextandares,
Despejada como lixo pelos ares


Marcham roseirais ao cadafalso,
Murcham emílias belas
Sob o granizo teimoso em não derreter


Ao túmulo margaridas e begônias,
Madressilvas e peônias,
Flores de maio, orquídeas, beneditas
Lírios, hibiscos, boninas,
Sempre vivas desprovidas de vida...
Crisântemos sem casas,
Aguapés e pés de acácias
Adornam faces vitimais da criançada...

Em descompasso, passo em falso,
Tropeçam e caem Isabelas aos pedaços,
Em cachos despetalados
Empalados em gramado gris







Um dia sonhei com Isabela, alguns meses depois da tragédia. Sonhei que ia por uma rua e encontrava seu retrato numa sarjeta. Apanhei-o e, assim que o tive em minhas mãos, a imagem e o papel desfizeram-se... Acordei. Pensei um pouco no sonho e levantei-me, dando início à rotina diária. Tomei o café da manhã para sair, acompanhando minha mulher ao ponto do ônibus, como fazia todos os dias.


Conversando, ficamos esperando o transporte. Percebi, nesse dia, alguma coisa brilhando mergulhada numa poça d’água me chamando a atenção. Quando minha mulher se foi e eu voltava para casa, olhei o objeto que brilhava: era uma fotografia de uma menina mergulhada na sarjeta. Ao lado da foto tinha uma caixa de papelão abandonada e amassada, cheia de recortes de papéis e restos de fitas coloridas.


Meio sem jeito, por causa da quantidade de pessoas ao redor, apanhei a fotografia. Deixei escorrer e levei-a para casa, lavei-a e botei para secar. Não parava um só instante de pensar no sonho que tivera e no fato de ter encontrado aquele retrato, até que resolvi fazer um desenho em grafite sobre papel e desse desenho fiz esse poema, uma pequena homenagem a Isabela:



CACHOEIRAS E LUARES


Recolhi o teu sorriso na sarjeta
E o fiz correr aos cachos
Em cachoeiras de mares
E escadarias de luares


Resgatei os teus cabelos nus
Na umidez de uma alameda
E guardei-os no aconchego
Penumbral de uma gaveta


No escuro vi brilhar,
À luz do teu olhar de pingo d’água,
Silhuetas nas vidraças
De pouso de passarada,
Remo, leme, um cais,
Um pontilhão e uma barcaça...


Colhi as tuas mãos
Na aridez cínzea da rua
Lavei a tua tez
No gotejar tênue da pia


Com lápis, borracha, esfuminho, algodão
Toquei a claridade de uma manhã meio fria,
Com pincel, uma caneta e suspiros de maresia


A riscos de luz de sol,
Num papel de seda pura
Resplandeci em teu semblante                      O
A iluminância da lua...











21 de fevereiro de 2011




Marinasceu e trouxe em si, o último céu crepuscular do mês de outubro

Marinasceu e trouxe em si uma constelação de sorrisos

Amanheceu, marinasceu e acendeu, em mim, uma manhã colorida

Embalada num cordão fez um ninho em minha vida



Marina nasceu com muito cabelo. Aos três ou quatro meses foram rareando, rareando e ela ficou quase careca. Um fiozinho aqui, um tufinho ali, outro acolá... resistentes à queda, foram novamente dando o ar da graça.


Um dia quando eu saía para trabalhar, olhei-a no berço, passei a mão em sua cabeça e falei: o seu cabelo parece um ninho de corujinha. Ela riu. Mas retifiquei e disse: não!... De corujinha, não!... De colibri. Sim!... Um ninho de colibri! Disse isso, brinquei mais um pouco e saí.


Eu estava realizando uma mostra de desenhos e pinturas numa escola do interior e para lá me dirigi. Chegando lá arrumei minha banca e, meio que por acaso, peguei uma quantidade de pequenos e alvos papéis que eu havia cortado em casa há muito tempo sem nenhum motivo definido. Apenas estavam ali como um pacote encontrado sem querer


Peguei um pedaço e comecei a rabiscar. O lápis e os traços corriam livres, assim como o tempo. Chegou uma hora em que senti vontade de parar e tentei entender o que estava ali desenhado. Rodei o desenho para um lado, para o outro, tentando obter, em meio àquela abstração, uma referência figurativa, sem nada encontrar. Quando ele ficou de “cabeça pra baixo” eu percebi ter feito uma flor e, aninhado e pairando acima dela, o perfil de um colibri.


No mesmo instante lembrei-me da rápida “conversa” com minha filha ao sair de casa. Lembrei dos seus poucos cabelos, do seu farto sorriso e fiquei ali com o olhar perdido e maravilhado contemplando aquela “coincidência”. Tentava entender por que e como isso se dá, quando, em meio ao silêncio próprio dessas ocasiões, uma voz que me conduz soprou no meu ouvido e bem baixinho me falou: Marina e a flora de lá... Eu, também em silêncio, perguntei: de lá de onde? A voz me disse: de onde ela veio... Trouxe de presente para você: folhas, flores e sementes. E, como se estivesse sorrindo, concluiu: continue desenhando...


Eu continuei, a voz silenciou. Peguei outro pedaço de papel e logo depois mais outro e mais outro, dando sequência a uma série de quarenta desenhos “trazidos” por Marina, tornando-os um presente para todos nós.




          M A R I N A   E   A   F L O R A   D E   L Á 

18 de fevereiro de 2011






             
              BORBOLETAS EM PIRACEMA
depois da série vela de filé resolvi abrir mão das cores e encarar de vez o preto e branco e suas milhares de tonalidades cinzas.
criei a série marina e a flora de lá e borboletas em piracema...
impressionou-me como as duas se completam e entrelaçam. aos poucos irei mostrando as imagens de uma e da outra e depois da junção das duas. 

Paulo Caldas: Paulo Caldas

Paulo Caldas: Paulo Caldas
paulo caldasartesplásticas

Paulo Caldas

Paulo Caldas
                     BRAVALAGOAS

Fui convidado, ou contratado, pela bailarina e professora Jeane Rocha para fazer o cartaz da peça apresentada por sua academia num espetáculo no final do ano 2009.


Jeane me deu o título acima e o norte para a confecção do cartaz. Seu trabalho enfatizou a bravura alagoana e nossa conversa rumou e aportou na capacidade de um povo que faz arte com esmero, carinho e dedicação e, quando busca um apoio, vê suas manifestações culturais desvalorizadas e relegadas a plano nenhum.


Deixando-me à vontade para escolher os símbolos com os quais eu trabalharia, escolhi o filé, a canoa e o sururu, o coco verde, o coqueiral e o folclore, imagens que tão bem representam nossa terra.


Partindo do cartaz, começaram a aparecer outras imagens, dando origem a uma série de vinte cinco desenhos à qual intitulei Vela de Filé




A série Vela de Filé enaltece alguns símbolos da resistência e força do povo alagoano: o filé, as rendeiras e a paisagem do Pontal da Barra; a canoa e sua vela sempre a postos; o sururu, o coco verde e o coqueiral, o pescador, os artesãos, os brincantes, mestres, mestras, contra-mestras e todos os demais personagens que fazem vibrar e tremer este abençoado pedaço de terra.


O Artista, como quem adentra um magnífico teatro, pede licença para homenageá-los pelo fato de existirem e darem ao cenário alagoano tanta beleza, tanta cor, tanto sabor e, acima de tudo, tanta poesia.


Vela de Filé é um agradecimento por ter nascido em berço tão esplêndido:



VELA DE FILÉ

Ao mar, a vela de filé...

Esquálida sinfonia

Complexa sintonia

De bravura e valentia,

De arrojo e rebeldia,


De talento e teimosia



Os tempos dizem não,


Mas o vento, não ao não,


Feito foz de furacão,


Com voz de sino e trovão,


Passa por entre redes


Que o querem prender e calar.



Torna-as floridas,


Divertidas geometrias coloridas


Impulsionando o sim, a arte e a vida


Com a tenacidade de um menino a brincar...